Substituição tributária do ICMS no RJ é ilegal
O polêmico e questionado instituto da substituição tributária acabou se difundindo nas legislações fiscais de ICMS dos diferentes estados. Hoje, mais do que um regime excepcional para fins de praticidade tributária, a substituição tributária converteu-se praticamente na regra geral de tributação desse imposto.
Em linhas gerais, na substituição tributária do ICMS (“ICMS-ST”), desloca-se a responsabilidade tributária, isto é, o dever de pagar o imposto, do contribuinte, que realiza o fato gerador (operação de circulação de mercadoria ou prestação do serviço de transporte ou comunicação), para um terceiro, integrante da cadeia econômica.
Esse deslocamento da responsabilidade pode se dar para se atribuir ao destinatário da mercadoria a responsabilidade pelo tributo devido na(s) etapa(s) anterior(es) da cadeia (“substituição tributária para trás”, v.g., o industrial que recolhe o ICMS devido pelo produtor) ou na(s) etapa(s) posterior(es) (“substituição tributária para frente”, v.g., o industrial que recolhe o ICMS-ST devido pelo comerciantes seguintes até o consumidor final).
A existência de uma ocorrência “antecipada” do fato gerador, ensejando o pagamento de um tributo antes do que seria o prazo normal, levou a uma intensa polêmica, nos anos 90, sobre a juridicidade da substituição tributária para frente. Mas, atualmente, a questão encontra-se pacificada no STF e no STJ no sentido da legitimidade dessa forma de cobrança do ICMS. Foi até mesmo incluído pela Emenda Constitucional 3/1993 o parágrafo 7º do artigo 150 da Constituição Federal de 1988 (“CF/1988”), prevendo expressamente a possibilidade de se atribuir ao sujeito passivo da obrigação tributária a responsabilidade pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.
Desde então, a substituição tributária, como ressaltado anteriormente, difundiu-se como uma das sistemáticas mais frequentes de recolhimento de tributo. Baseada na “praticidade tributária”, que permite às Administrações Tributárias o recolhimento antecipado do tributo, com a concentração da responsabilidade em alguns poucos contribuintes, de maior porte, e na utilização de margens ou pautas fiscais para se calcular o valor das operações e prestações, facilitando a fiscalização, a substituição tributária hoje alcança os mais diversos produtos. De gêneros alimentícios a automóveis, inúmeras são as situações sujeitas ao ICMS-ST.
Mas, animado pela praticidade da substituição tributária, o estado do Rio de Janeiro, acabou levando esse instituto às raias do exagero, malferindo a CF/1988 e a disciplina legal do ICMS pela Lei Complementar 87/1996.
Por meio da Resolução 537 de 28 de setembro de 2012, notadamente do seu artigo 4º, a Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro (“Sefaz-RJ”) está exigindo o ICMS-ST na barreira fiscal quando produtos sujeitos à sistemática do ICMS-ST no Rio de Janeiro ingressam em território fluminense.
Vale dizer, um contribuinte, situado em outro estado da Federação, envia mercadorias ao estado do Rio de Janeiro e, antes mesmo que essas mercadorias cheguem a seu destinatário, localizado neste estado, e se aperfeiçoe a tradição, com a entrega da mercadoria, o Fisco estadual está exigindo o ICMS-ST do destinatário dessa mercadoria. Imposto esse que —frise-se bem— seria normalmente destacado apenas no momento da saída dessas mercadorias do estabelecimento deste último contribuinte.
Qual o fato gerador desse tributo? Dispõe, de forma direta, o parágrafo 1º, do artigo 4º da Resolução Sefaz-RJ 537/2012 que considera-se ocorrido o fato gerador nessa hipótese “no momento da entrada da mercadoria ou bem no território deste etado, inclusive na hipótese de destinatário varejista fluminense”. Por mais absurdo que possa parecer, o fato gerador do ICMS-ST nesse caso é exatamente “a entrada da mercadoria” no território fluminense.
Infelizmente, essa tentativa do etado do Rio de Janeiro de exigir o ICMS nesses moldes não é nova. No ano de 2004, por meio da Resolução 80/2004, o etado do Rio de Janeiro pretendeu exigir ICMS-ST sobre operações interestaduais que destinassem mercadorias a contribuintes no etado.
No entanto, como a Lei Complementar 87/1996, em seu artigo 9º, dispõe que a instituição de substituição tributária em operações interestaduais depende de convênio, protocolo, ou acordo, firmado entre as unidades federativas envolvidas, e a Resolução 80/2004 exigia o ICMS-ST, mesmo na ausência desse acordo interestadual, diversos contribuintes foram a juízo naquela ocasião e tiveram seu direito amparado, com o reconhecimento da ilegalidade da citada resolução.
Agora, tentando contornar esse entendimento jurisprudencial, o artigo 4º da Resolução Sefaz-RJ 537/2012, que trata especificamente das “aquisições realizadas em operações provenientes de outra unidade federada por contribuinte substituto localizado neste estado com mercadoria sujeita à substituição tributária quando não há convênio, protocolo ou termo de acordo atribuindo a qualidade de contribuinte substituto ao remetente”, estabelece que a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS-ST cabe ao destinatário da mercadoria, mas —e esse é o ponto nodal da questão— antes que a mercadoria chegue ao seu destinatário.
A nosso ver, a Resolução Sefaz-RJ 537/2012 subverte a natureza das coisas e toda a sistemática da substituição tributária em operações interestaduais.
Em primeiro lugar, o artigo 4º da Resolução Sefaz-RJ 537/2012 atenta contra os artigos 145, parágrafo 1º; 150, parágrafo 7º; e 155, inciso II, todos da CF/1988, pois exige o ICMS sobre um mero ingresso territorial de mercadoria, desprovido de qualquer conteúdo econômico, sem que se opere a transferência efetiva ou presumida da titularidade da mercadoria comercializada.
Mesmo na substituição tributária para frente, o que pode ser tributado é a operação presumida. Mas, para que ela se configure, ou melhor, para que se possa presumir uma operação, é necessário, minimamente, que haja uma operação anterior e o substituto tributário esteja em condições de iniciar a cadeia de operações seguintes (“presumidas”). Isto é, no mínimo, o contribuinte deve estar na posse da mercadoria e ter condições de efetuar a sua circulação. Daí porque o ICMS-ST é normal e regularmente destacado quando da saída da mercadoria do estabelecimento do substituto tributário. E não, em um momento anterior, quando a mercadoria sequer chegou ao seu estabelecimento.
Caso contrário, não se tributa uma operação presumida, mas uma expectativa de operação, o que não é minimamente condizente com a materialidade tributada pelo ICMS. A se persistir nesse rumo de exagero em nome da praticidade tributária, ter-se-á como tributável pelo ICMS-ST o automóvel tão logo o produtor de minérios extraia a bauxita da mina. Mutatis mutandis, é quase o que faz a Resolução Sefaz-RJ 537/2012, ao exigir o ICMS-ST quando a mercadoria cruza a barreira fiscal.
Em segundo lugar, a tributação em questão faz-se em flagrante violação ao princípio da não cumulatividade do ICMS, segundo o qual é direito do contribuinte se creditar do imposto incidente na operação anterior, para compensação com o imposto devido na operação seguinte. Além de se criar o débito do ICMS na operação seguinte, antes do direito ao crédito da operação anterior, que se dá com a entrada da mercadoria no estabelecimento do contribuinte, a Resolução Sefaz-RJ 537/2012 ainda impede que o ônus do imposto seja transferido na cadeia econômica. Isso porque se exige o ICMS-ST sobre as operações seguintes, antes que o contribuinte venda a mercadoria, o que desvirtua a neutralidade do imposto.
Em terceiro lugar, a Resolução Sefaz-RJ 537/2012, ao criar um tributo cujo fato gerador é o ingresso da mercadoria em território fluminense, estabelece limitação ao tráfego de bens, por meio de tributo interestadual, o que é expressamente vedado pelo artigo 150, inciso V, como uma limitação constitucional ao poder de tributar.
Em quarto lugar, nem se alegue que a Resolução Sefaz-RJ 537/2012 está apenas antecipando a ocorrência do fato gerador, sem a exigência do ICMS-ST, pois o que ela exige é justamente o ICMS-ST. E, nesse caso, há precedentes do STJ (RMS 21.118) entendendo que essa matéria só pode ser disciplinada por meio de lei complementar, nos termos do artigo 155, XII, “b” da CF/1988. Não se pode, portanto, criar esse regime tributário por via infralegal, tanto mais quando se trata da criação de um novo fato gerador do ICMS.
Em quinto lugar, a Resolução Sefaz-RJ 537/2012 viola expressamente o mencionado artigo 9º da Lei Complementar 87/1996, que exige acordo específico para a adoção de regime tributário em operações interestaduais. Com todas as vênias, a operação em que se está exigindo o ICMS-ST é nitidamente uma operação interestadual. Não pode o estado do Rio de Janeiro simplesmente cingir essa operação interestadual como se se tratasse de duas operações internas ocorridas cada qual em um estado. Proceder dessa maneira é frustrar os objetivos do artigo 9º da Lei Complementar 87/1996, em prejuízo dos contribuintes localizados nos estados envolvidos.
A praticidade tributária tem limites, assim como a substituição tributária. Não se pode, em nome da facilidade e eficiência, malferir direitos e garantias dos contribuintes, como faz o artigo 4º da Resolução Sefaz-RJ 537/2012. Por isso, entendemos que os contribuintes que se sentirem prejudicados pela Resolução Sefaz-RJ 537/2012 têm bons argumentos para questioná-la.